sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Sozinho, você vem?

Hoje sento só
Sinto-me bem só
E a sós escrevo sobre Ti
Sem vento, sem tempo, sem alento
O cheiro de trabalho e treino
Cheio do Sol que arde aqui pela janela
Respiro e sinto meu coração encurralado
Cansado, apertado
Clamando pra que se deixe amar
"Me deixa amar", o grito rasga o peito
Tão somente na metáfora
Enquanto o peito tão só dói
Sem ação, sem coragem

Ergo os olhos
Esperança em forma de luz e movimento
Nas folhas de um solitário coqueiro
Tão só quanto eu me sinto
Abrigo em mim todas as dores do mundo
E um viver tão profundo
Que quase não me cabe

Me acompanha quem mergulha fundo em tudo
Mas sinto romper cada fibra
Tentando segurar a mão de quem prefere o raso
De quem molha os pés e não afunda
Não ousa deixar faltar ar nos pulmões
Pra conhecer os mistérios do fundo
Do profundo de cada nós

Mergulho em mim
E agora sim, me deleito
Bato braços e pernas
E até as asas do coração se sacodem
Choro rios, e transbordo torrentes de sentimentos
Enquanto canto alto, e grito alto
E me deixo ser tocada por palavras
Eternizadas em som
De alguém que nem sequer conheci
Outro artista, profundo sofredor
Como eu

Artista que sou, não posso
Não consigo, não quero
E não vou me conformar com o raso de nada
Fui feita para o profundo
E fui tao bem ensinada a isso
Desde tao pequena
Me afogava, e não entendia nada
Mas é no profundo que encontro abrigo
Descanso e casa
Tento, em vão, mostrar-te a beleza disso
Tu que estás tão preso às coisas palpáveis
Terrenas
Fugazes

Não posso escolher a superfície
Após provar e viver a profundidade
Não posso ser rasa, e ter água nas canelas
Se todo meu ser anseia a entrega
Absoluta
Não dá pra ser metade
Depois de ter sido inteira

E por isso, então, lhe proponho
Sem julgamentos, apenas uma escolha
Tão só respire fundo,
e mergulhe comigo
Ou permaneça na superfície,
Acomodado e sozinho
Você vem?



quinta-feira, 29 de março de 2018

Memória fria

Olhei pela janela, o vidro embaçado pelo vapor da água quente caindo do chuveiro. Árvores sem folhas ao fundo, tempo fechado. De repente estava denovo debaixo de outro chuveiro quente, que se auto desligava a cada 30 segundos, com o corpo cansado e satisfeito. De repente estava eu, com os pés no riacho, ouvindo música nos fones, assistindo meus amigos ao longe. De repente atravessei uma pequena vila com criadores de vacas com sininhos no pescoço. E, mais de repente ainda, descia saltitando uma estrada longa de cascalhos, sozinha, eu e Sandy. Corajosa, destemida, completa. De repente, lancei ao lado minha mochila pesada e meu cajado, e com as mãos na cabeça, joelhos no chão, gritei, questionando ao universo o porque de todo aquele sacrifício. Chorei e, de repente, me lembrei o porque tinha começado. De repente estava em um quarto no topo de uma montanha, me apaixonando por um português misterioso e tagarela. De repente estava sozinha, na frente de uma lareira que o senhor cuidador do albergue, carinhosamente, havia acendido pra mim, sua única hóspede aquela noite. De repente ouvia sua história de amor e renúncia, e a decisão de dedicar-se ao cuidado dos peregrinos. De repente, em um parquinho de crianças, deitada na grama, beijava carinhosamente, pela primeira vez, a boca do português, olhando fixo em seus olhos. E ele, os meus. De repente ouvia seus versos a meu respeito e parava todo o tempo ali. De repente, em uma arena de batalha, ou uma feira medieval, imaginando-me em uma cena de um filme, fui cumprimentada com um "Bom Caminho" bem abrasileirado. Sabedor de meus passos, soube logo minha nacionalidade. Arriscou certo e com bravura. De repente, então, estava na barraca do David, tomando um suco. De repente, estou nos Pirineus, assustada com o barulho do vento la fora, me abrigando em uma pequena construção, junto com um brasileiro teimoso e, tão cedo no caminho, já adoecido. De repente via as ruínas medievais de uma cidade fantástica, os castelos famosos por sua arquitetura, as igrejas, suas imagens, paredes, lustres, portas, altares, e os meus preferidos, os tetos majestosos. De repente caminho entre carros e cidades grandes, sempre na companhia do prato do dia e um bom vinho caseiro. Conheço vinícolas e parreirais, fazendas, vilas, cachoeiras, albergues, bares, estradas, pessoas, ideias, sensações. De repente, atravessando as plantações, no meio de um lugar tão único e tão distante de tudo, recebo uma ligação de uma grande amiga, um oceano distante. A cada dia esperava, de repente, às 10 da manhã, uma mensagem de motivação do meu progenitor, meu melhor amigo, que, a principio, reprovou minha ideia maluca de atravessar tantos quilômetros sozinha, com uma mochila, a pé, do outro lado do mundo. Mensagens de coragem em um momento decisivo também vieram nas redes sociais. De repente, me vi só, de repente, uma família. "Taitarí", agradeci e escrevi em uma parede, debaixo de uma ponte urbana. De repente adoeci, parei, fui amada. De repente, andei de trem, peguei carona na estrada, afundei meus pés enrolados com sacolas embaixo das botas, na neve. Brinquei sem me cansar, fiz anjinho, bonequinho, e até achei que ia perder a mão de tanta dor que o gelado me causou. De repente aprendi palavras em coreano, alemão, e fazia sempre a tradução das conversas em inglês e espanhol. De repente, eu venci a mim mesma, venci a vontade de desistir, venci a fraqueza e também a força, venci as certezas, venci a expectativa, venci o medo e, de repente, cheguei em casa, na praça dos quatro poderes. Girei como criança, com os braços abertos, olhos fechados, cabelos em movimento. Sentamo-nos em roda no chão, a família. De repente, gratidão. E, de repente, memória. De repente tudo denovo.