Análise Humanista do
Filme O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain, de Jean-Pierre Jeunet, França/ 2001
Para Rogers, cada pessoa tem
a capacidade inata para se auto-atualizar, e as pessoas psicologicamente
saudáveis são aquelas que se abrem para a experiência, vivendo plenamente cada
momento e cada oportunidade, sendo capazes de serem guiadas pelos próprios instintos
– em oposição à razão e opinião alheia -, são livres e altamente criativas.
Assim vejo Amélie, uma mulher perfeitamente saudável, apesar da história um
pouco fria. Amélie vive intensamente cada fato, cada olhar, cada história, e,
mesmo que hesite um pouco antes de agir, decide por seguir seus instintos e
fazer o que deseja, usando amplamente a criatividade para viver o seu mundo, e
fazer melhor o mundo de outras pessoas.
O tempo todo ela faz isso no
filme, com os moradores do prédio, com o pai e com o rapaz por quem está
interessada. Ela faz com que Madalena Walacce dê um fechamento no seu passado e
possa viver no presente; sensibiliza o coração de um homem que se diz de vidro,
por ser tão frio e frágil, a ponto deste aprender como dar mais cor à sua
própria vida; encoraja também o pai a esquecer o passado e viver coisas que
gostaria de viver, se tornando mais saudável psicologicamente; faz com que um
homem e uma mulher enxerguem além de seus problemas e se apaixonem; etc. Ela
atua como uma facilitadora da experiência das pessoas ao seu redor, posição que
deve ser tomada pelo terapeuta em uma terapia humanista. Esse foco em viver no
presente é um conceito bastante importante nessa terapia, pois significa estar
em harmonia com a vida. Na verdade são as próprias pessoas que decidem viver de
verdade, e Amélie atua como uma facilitadora dessa experiência.
Na cena em que o pai de
Amèlie lhe faz o exame mensal, esta parece apática, mas na verdade seu coração
batia forte ao estar perto do pai. É engraçada a forma como demonstramos
emoções, acredito que não existem pessoas sem emoções, existem diferentes
formas de mostrá-las. Muitas pessoas vivem tentando mudar, ser parecidas com fulano ou ciclano, mas a felicidade e a satisfação não estão em determinado tipo
de personalidade, mas sim na aceitação e congruência de si mesmo com sua forma
de ver e pensar.
Amélie, para evitar o
confronto com o mundo, se refugiou na solidão, era sua forma de encarar a
realidade. Isso não é uma patologia, é apenas uma maneira de viver. Cada ser
tem sua forma de alcançar objetivos, de enxergar a vida, de acordo com suas
crenças fundamentais. Amélie dá muita atenção às coisas simples, como jogar
pedras em um canal de sua cidade, e as características ou hábitos mais
particulares de cada pessoa que conhece. No filme todo se enfoca essa atenção
às coisas simples. Esse é um ponto a partir do qual gostaria de partir com a
minha análise. Apenas pessoas que vivem exatamente o momento em que estão
inseridas são capazes de apreciar as coisas simples. Aqueles que vivem no
passado ou no futuro não têm essa capacidade. Estar bem consigo mesmo requer
estar em congruência com o que pensa e com o que acredita, e não se submeter a
exigências a fim de agradar alguém ou se moldar a um modelo bem aceito na
sociedade; requer não estar demasiadamente ansioso pelo que há de vir daqui
anos, dias ou minutos; e também não estar preso ao passado, e não carregar
culpa por nada que tenha feito ou deixado de fazer.
Também são enfocadas as
situações imprevisíveis, que fazem mudar totalmente o curso da vida das pessoas.
Amelie, em um dia qualquer, descobre uma caixa de memórias escondida em um
azulejo na parede de seu banheiro. Pesquisa pra saber quem morava lá antes dela
até encontrar o dono da caixa de memórias. Decide que se, ao devolver a caixa,
o homem se emocionar, ela vai se empenhar em intervir na vida das pessoas. Com
essa decisão ela coloca seu destino nas mãos de outra pessoa. Amélie se sente
em harmonia com ela mesma e quer ajudar toda a humanidade. Amélie tem
dificuldade de lidar diretamente com as pessoas, então vive usando a
criatividade pra inventar meios de se relacionar e mudar de alguma forma a vida
das pessoas. Por isso, inventa toda uma situação para devolver a caixa de
memórias a seu dono e a experiência dá certo. O homem se emociona, e Amélie
então decide mudar o curso da vida de algumas pessoas.
Por Amélie ser extremamente
criativa, ela explora hipóteses muito engraçadas a todo tempo, como quando
pensou quantas pessoas estariam tendo um orgasmo naquele minuto, e nas
hipóteses que cria para entender porque o homem misterioso tira fotos em todas
as estações de metrô. A criatividade, segundo Rogers, se desenvolve em uma
pessoa psicologicamente saudável.
No filme, quando Amélie fica
com o álbum de Nino e este espalha cartazes com seu número de telefone para
reencontrar o álbum, a narração do filme diz que qualquer garota normal ligaria
e marcaria um encontro pra ver o que aconteceria, mas que isso seria encarar a
realidade, e Amélie não queria isso. Acredito que tenha ficado um pouco
insegura, mas quando encorajada pelo homem de vidro enfrentou a realidade do
seu jeito particular. Amélie passa a se compreender e se aceitar melhor na
medida em que se relaciona com as pessoas, pois no encontro com o outro nos
tornamos mais autênticos, assim acreditam Carl Rogers e Luma Strobel de
Freitas. Nesses encontros de Amélie, principalmente com o homem de vidro, eles
não se cobram nada e se aceitam incondicionalmente, o que favorece o encontro
consigo mesmos. Segundo Rogers, o
sentimento de cumplicidade gera transformação e autoconhecimento.
Cada pessoa mostrada no
filme é fruto de suas escolhas. O cara perseguidor de mulheres, o jornalista
fracassado que só copia, a balconista que acredita nas suas invenções de
doenças, a dona da cafeteria, o próprio Nino, o pai de Amélie que escolheu se
fechar em seu mundo, etc. e Amélie, que resolve conquistar Nino e mudar a vida
de muitas pessoas, decidindo por seguir seu destino. Quando deixamos passar as
chances, nosso coração endurece e fica frágil, então ficamos psicologicamente
doentes, pois não fizemos o que queríamos fazer.
É engraçado como a síndica
do prédio de Amélie relaciona seu próprio nome com significados em que
acreditou ser verdade: Madalena Walacce, destinada às lágrimas. O fato de ela
acreditar e aceitar isso como realidade faz com que ela se conforme e seja
realmente assim. Cada fato da vida tem um significado diferente para cada
pessoa, de acordo com sua singularidade e forma de ver o mundo, como na cena em
que o homem da caixa de memórias diz, de forma poética, que a cabine telefônica
o estava chamando para vivenciar algo mágico, enquanto o homem da lanchonete
diz que o microondas o estava chamando para o trabalho, de maneira tragicamente
realista.
Em uma cena do filme, Amélie
imagina seu destino, e chora, se sentindo insatisfeita, o que a leva a decidir
por mudar o rumo da vida de seu pai também. Ela não se atrasa, se culpando e se
lamentando, ela simplesmente segue seus desejos e instintos, fazendo o que acha
certo e digno. Dessa forma, escolhe por ser ela mesma, agindo de acordo com o
que faz bem a ela, que leva à saúde psicológica, segundo o humanismo.